Da Poesia Viva

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Local: Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brazil

Quem passou pela vida em branca nuvem/ E em plácido repouso adormeceu;/ Quem não sentiu o frio da desgraça,/ Quem passou pela vida e não sofreu,/ Foi espectro de homem - não foi homem,/ Só passou pela vida - não viveu. (Francisco Otaviano)

29.8.08

Desastre

O meu amor é um desastre!
Um revés que é lento,
à maneira de uma folha em queda,
aquém da gravidade.
Por ser intenso, ultrapassa-me
em todos os momentos
ao despencar em velocidade.
Assim, quando atinjo o limite,
quebram-se os membros,
rompem-se os órgãos
e as veias se liquefazem.

Tudo agora é um só corpo:
Sentimento e brutalidade;
Regozijo e infortúnio;

Meu amor é a colheita de um fruto
crescido na terra da saudade.

É também um inseto noturno
alimentado por mariposas
quando a escuridão o invade.
É tão profundo e soturno,
que se funde em casulos,
temendo a própria vaidade.

25.8.08

Tardio

Pelo sim, pelo não, desapareço
Entre o fim da ilusão e o recomeço,
Que há decerto no fundo de mim mesmo,
Suprimindo o amor.

Perco o tempo:
A vitrola parece um contratempo
Revestida em passado e sentimento;
Sobre a estante um buquê e uma arandela; ainda mais:
Um Gershwin ecoa
E um Jobim voa...
Nunca é demais!

Os meus olhos parecem feitos d’água,
Quando rasgas minha pele sob a mágoa.
Na calada da noite em que me afrontas
E carregas contigo minha sombra:
Sinto amar demais...

Essa angústia carrego em meu destino
Como a virgem, no ventre, leva um filho.
E a esperança no fundo de um bacio,
Suprimindo o amor.

Perco o tempo:
Nunca sei pra onde vou nem de onde venho
Meu caminho é uma dose de veneno
Misturada num cálice de ungüento e aguarrás:
Um sonho ecoa
Teu cheiro voa...
Nunca é demais!

Nem a chuva amargada em que me lavo
Nem a brisa entoada em que viajo
Quando entras soprando à minha porta
E carregas contigo minhas horas,
Sinto amar demais...

12.8.08

Meu Caminho

Meu caminho é nas pernas dela
(Fiorentino)
espiralado num ímpeto maldito
onde as palas que há nos vícios
protegem-nos do couro fino
a se rasgar na mão da fera

Meu caminho é nas costas dela
(Trás-os-Montes)
por detrás das vértebras do horizonte
onde há cânticos dos monges
e há claridade que nos rompe
numa tal cegueira molesta

Meu caminho é nos seios dela
(Carioca)
beira d'água, areia; na orla
onde a toda dor é dada forra
em cada esquina, uma arte nova
que ela, 'inda crua, não revela

9.8.08

Segredar

Todo segredo é uma confidência por si só.
Mora na retina, como se quisesse sair
quando se acorda.
Mora nas esquinas, prestes a contorná-las
a qualquer hora.

Segredo é coisa entre palco e bailarina.
Coisa entre os dedos seresteiros
e as cordas da viola.

Segredo mora nas padarias
em forma de sonhos;
não parece, mas é um doce
que nem o de carambola.

O segredo é infurnado n'areia,
preso ao destino:
é do casamento entre sereia-pássaro
e compositor menino.

Segredo é um trato por excelência
porque nunca vi assim um segredo
tão preso que não fosse dividido.

Um Momento Normal

Agora, tudo segue normalmente.
Assim bem como um normal se deveria seguir:
uma norma ou regra ou sujeito correto da mente.
Um jeito habitual de levar a vida.
Um processo ordinário de se prolongar o tédio,
cabendo a ele, ser definido como um exemplo
de cotidiano muito mais metódico que complexo.

Mas, quem sabe, talvez,
meu normal acabe por ser muito mais matemático:
"uma linha perpendicular à tangente ou ao plano tangente,
no ponto de contato".
Assim podendo minha normalidade ser quase uma reta
que se cruzou um dia com a vida,
fez-se a felicidade completa,
e que nunca mais a encontrará de novo.

Mesmo que minha vida parabólica
alcançasse a meta de se reviver
e reviver num eterno agouro.

6.8.08

Salineiras (homenagem)

Brisa leve de maral,
quebra o cais nas ondas,
odes e corais.
Entre a vela e o castiçal,
vinho apruma a vida
e o tempo segue em paz.

Coisa de ventura:
rastro de deixar solidão
se perder.

No contrário das horas,
na forra da noite;
no gosto, o sal.
Na risada, no guizo
dos sonhos, no porto,
no vendaval.

E a esperança navega
nos olhos enquanto capaz
de alastrar canção.

Desde então,
quero mais,
sempre mais...

5.8.08

Palco

Aqueço as mãos.
Esfrego-as as duas,
uma noutra.
De olhos fechados
as assopro.
Estico os dedos;
estalos e quebras
e remorsos.
Gargarejo maçã e
viro uma dose
de pinga insossa.

Com ar de afagado,
retiro os cabelos
da testa.
Abro os olhos,
desafio:
é minha desforra!
Grito a mim mesmo,
"Merda"!
E adentro o teatro,
esquecido de mim
lá fora.

Diálogo Final (de Carlos Drummond de Andrade)

- É tudo que tem a me dizer? - perguntou ele.
- É! - ela respondeu.
- Você disse tão pouco.
- Disse o que tinha para dizer.
- Sempre se pode dizer mais alguma coisa.
- Que coisa?
- Sei lá. Alguma coisa.
- Você queria que eu repetisse?
- Não. Queria outra coisa.
- Que coisa é outra coisa?
- Não sei. Você devia saber.
- Por que eu deveria saber o que você não sabe?
- Qualquer pessoa sabe mais alguma coisa que
outro não sabe.
- Eu só sei o que sei.
- Então não vai mesmo me dizer mais nada?
- Mais nada.
- Se você quisesse...
- Quisesse o quê?
- Dizer o que não tem pra me dizer. Dizer
o que não sabe, o que eu queria ouvir de você.
Em amor é o que há de mais importante:
o que a gente não sabe.
- Mas tudo acabou entre nós.
- Pois isso é o mais importante de tudo:
o que acabou. Você não me diz mais nada
sobre o que acabou?
Seria uma forma de continuarmos.