Da Poesia Viva

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Local: Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brazil

Quem passou pela vida em branca nuvem/ E em plácido repouso adormeceu;/ Quem não sentiu o frio da desgraça,/ Quem passou pela vida e não sofreu,/ Foi espectro de homem - não foi homem,/ Só passou pela vida - não viveu. (Francisco Otaviano)

28.6.07

Soneto à Cidade das Flores

Achava que tua cor seria amarelada.
De cima (de dentro da ilusão) saberia
da cidade pura que, em sonho, visitava, e
que cheirava um cheiro roubado da poesia.

Imaginava-te em tua ampla serenidade:
nuvens ralas, trepadeiras azuis nos postes;
sinhás em corpetes e moçoilos em fraques;
ruas desniveladas e estátuas em porte.

Pensava que, em ti, meu tempo se desandasse;
minha vista cega recolhesse-te as cores ;
e um domo ornasse em tua alta catedral de males.

Lembrava-me de ti, que és cidade em bolores;
que a velhice toda de tua vida - tua entrave -
conteve que teu rio chorasse em tuas flores.

27.6.07

À Vida

Que a solidão me venha bem depois,
Porque agora me recolho na vida.
Ela que sabe entender o que foi
E sabe explicar o que me destina.

Que nós dois nos fazemos companhia
(Que a solidão não me faz, de repente).
Nada de choro ou lágrima expelida,
Até porque o que sofro, ela não sente.

Nós, da varanda, fitamos o céu,
Conversamos algo de astrologia
- Que, de fato, não sabemos ao certo,
Mas suspende a dor, quiçá me alivia.

Porque há tudo de natureza viva
Que a solidão não conhece tão bem.
E a vida sabe, talvez sem medida,
Que dor passa, mas saudade devém.

22.6.07

Poema da Corte

Vejo-te 'inda pura:
despejada na cama,
enrolada aos lençóis;
Tão branquinha,
de olhos de lua...
Que meu sonho, às alturas,
nos leva feroz.

Vejo-te 'inda tua:
Desejada por anjos,
enlaçada por nós;
Tão levinha,
que, em mim, flutua...
Que, de tanta ternura,
nos deixa sem nós.

Vejo-te 'inda crua:
Desaguada por nuvens,
impedida na foz.
Princesinha
que, em mim, fajuta, a
saudade perpetua e
me entreva sem dó.

Acaso

O acaso é a mão que a memória usa
Quando acorda o passado
E planeja um futuro despedaçado
No qual não me cuido e me largo.

Um passado que leio,
Lembro e desbravo.

Onde vejo-me leite derramado e
Um fraco circuito de anseios,
De aperreios e beijos amargos.
Meu passado que é meu leito de fuga;
Meu peito que é, do lume, a mura:
Onde colhi-me agruras
E que tanto pareço-me desamado.

21.6.07

Escondido

Não se acha no jardim
Enterrado como um osso
Nem nos arbustos
De onde ilumina-se um olho
Ou atrás de um banco

Nem se encontra na perdição
Nem se perde num desencontro
Não se atrasa num contratempo
Nem o tempo o acelera
Feito um marcapasso à ilusão

Não se desarruma fácil assim
Nem se acaba no armário
Como as cartas que te guardo
Como o aguardo de um fim

Não rompe do casulo mariposa
Nem pousa delicado na fruta
Nem a noite destoa o luar
Nem toada que mereça a lua

Coisa assim não se desvenda
Nem é cabra-cega
Nem se descuida e nem se vela
Nem se larga e nem se prende

Coisa assim apenas se lembra
Nem se finda quando à cova se leva
Nem se julga ou a corte o condena:
Coisa assim, tanto procuram,
Que não se nega.

20.6.07

Tempo

Cada um bem no seu tempo de partir
Quando um floresce novo, o outro germina
E se faço-me de morto, ele vibra
Se largo-me no mundo, ele quer vir

Num tempo meu, vivo-te à noite inteira
Num tempo que é teu, morro-te e não clamo
Meus segundos são dias, os teus, anos
Minha dor é completa, e a tua, meia

Ponteiro que do relógio me foge
Que eternamente pertença-me o tempo
Não digo de todo o arrependimento
Mas do que sinto, crio-te minha ode

Um tempo que não é soneto, mas tenta
Que não é palavra, mas murmura fundo
Meu tempo nazista que ergue-te um muro
Do lado judeu, rompe-te nas fendas

E verso-te no meu tempo de lápis
E bordo-te num tempo meu de lã
Canto-te na caixa da bailarina

Meu destino torto ou minha sina vã
De amar-te grande; tanto que não cabe

Nosso tempo de cantos e de imagens
De futuros incertos e de planos
Que assopramos juntos à tempestade

Um coração tão molenga, de pano,
Que ama-te grande; tanto que não sabes.

19.6.07

Sala

Um guarda-chuva seca na varanda
De uma chuva que ainda nem veio
Uma lareira que deveria estar ali
Cheia de cinzas e a pá encostada
A mesa em que deixei as laranjas
Beira o sofá com as marcas deixadas
Num chão firmado pelo contrapeso
Num surrado travesseiro que vi

A distração das árvores na mata
De um vento que passa alheio
Um galho onde dorme o sagüi
Cheio de sono e farto de cansaço
A lâmpada apagada na pantalha
O copo meio cheio da mesma água
Sobre o livro mesmo que ainda leio
Um calado sofrimento que vivi

16.6.07

Soneto da Flor de Inverno

A flor que brotou no alto da montanha,
Onde a grama que a circundava morta,
Ora enverdecia de forma estranha:
Fina, frágil, formigada e frondosa.

A flor, que além de qualquer estação,
Flora solitária, contida muito
Pelo prazer fugaz da solidão
E pelo ofício de seu próprio cuido.

Sobre a flor, bem lembro, descia a neve;
Flocos de gelo que então a encobriam,
Delicados, suspendidos de leve.

Fui à flor vestido de colibri.
Acho até que vi o que se ver não deve:
A flor cair de frio sem se abrir.

Inacabado

Da parede dos fundos 'inda brota água infiltrada.
As janelas empoeiradas, o chão de taco rachado,
a luminária pendular,
os ruídos dos canos que dão à bebida um gosto enferrujado.
Os tapetes de pano que cobrem os buracos no piso,
os lençóis brancos sobre a mobília desmontada.
Os banheiros escuros, sem latrina ou chuveiro, nem pia.
A mágoa escondida nos armários,
cartas que voltaram de um falso destinatário,
um destino desvencilhado das amarras da vida.
O teto rabiscado de um dos quartos,
as beliches invisíveis, o baú de retratos.
Um cheiro de flor me sopra da varanda,
o mesmo cheiro da flor preferida enraizada
em minha cama.
O abajur deitado, a lâmpada estourada na sala.
Um peso no ar que não sei de onde vem:
Um peso nas pálpebras, um nó nos cílios,
um beijo que sinto nos olhos
da pétala macia dos lírios.
Uma leveza incontrolável nos mosquitos,
que mordiscam minha pele.
Um cheiro de casa abandonada
como o cheiro do meu coração
onde habita uma dor inacabada
e que, decerto, a merece.

14.6.07

Soneto Contido

Vou pensando no mar que me acompanha...
Na sombra dos coqueiros; vou nos pombos,
nos mendigos, nos pivetes do front,
no sossego, na brisa que bate à campanha.

Vou pensando nos que se largam fracos,
quando o peso dos ombros multiplica.
Naqueles sozinhos que amam ao contrário,
quando a certeza do amor é a partida.

E quem sabe se, das coisas que penso,
há fartura de sonhos escondidos;
há sonhos demais num real de menos.

Quem sabe, mais tarde, eu veja o sentido em
dever amar contido, mas intenso;
amando o que não lembro e o que não vivo.

13.6.07

Para buscar Eurídice

Nem minha lira adormeceu
o cão de três cabeças.
De tanto mais que a toco,
deixo vazar-me poemas
com cheiro de carne fresca.

Soneto Simples

Quero de todo o amor que tens
Uma parte que não te doa
E que no sonho me devolva
Pois esse amor tanto devém

Quero pois não tenho mais nada
Preciso porque dei-te todo
Em meu coração ficou pouco
Que minha memória não apaga

E mesmo que tivesse mais
Por pura obrigação é teu
Como o barco obriga o cais

Como o beijo que feneceu
Que o mundo merecia os tais
Por mero capricho de um deus

Soneto da Volta

De não viver-te mais intensamente,
Agora, o engasgo do peito me esfria;
A dor introvertida então se venda,
E, cega, dentro do corpo se abriga.

De ver findar-se assim tão lentamente,
Agora, o controle das pernas, perco;
A cor que na face rubrava sempre,
Desbota a tanto que fecho-me dentro.

Mas que deixaste habitar em meu leito
Uma invisível forma dos segundos
Uma lembrança forte do teu cheiro

Que um dia, quando vagar moribundo,
Uma carcaça de alguém com teu jeito -
que há de ser tu, receio - entrará fundo.

Do Amor Completo

Quando e onde ontem adormeci
Havia um som constante de gota
Um estalo cretino de lenha
Um barbante esticado com bandeirolas
verdes, vermelhas, azuis, brancas
Um gosto de maçã vermelha
no ar que o sopro mexia

Havia um som de sirene
bem no átrio do ouvido
Um aviso da felicidade entocada
lá no fundo do fundo do abismo
que o cérebro guarda

O chão das ruas sujo
O céu aberto para os amantes
A lua encoberta para os largados
O insulto do fogo inconstante
O bosque por trás do prédio...
Quisera que lá me escondesse
da vergonha que sinto
por me entregar e amar completo

11.6.07

Ode ao Entendimento

Tens mais de conquistas do que eu...
Sei que é difícil um pardal enjaulado,
Muito mais que um bicho-preguiça.

Sei disso porque sou bem mais fraco.
Sou mais urubu que circunda carniça,
Que as aves que encorajam traçados.

Sou mais um porco aproveitando a sobra
Ou um rato vasculhando a carne próxima,
Que uma águia migrando e criando rotas.

Entendo tua ânsia por tanta liberdade.
Como se, na caverna em que moro escondido,
Crescessem tuas flores e tuas folhagens.

Sou mais um morcego enrolado nas asas,
Que um colibri enroscado nas gramas,
Que um pelicano empapado nas águas.

Entendo tua luta por tanta verdade.
Como se, na parede em que escrevo teu nome,
Escorressem memórias que desconstróem frases.

Sou mais memórias, de fato, que expectativas;
Mais um silêncio contigo, que tantas outras gritarias;
Mais solidão contigo, que outra inútil companhia.

Pois entendo teu gosto pelo acaso,
Como se, na claridade em que perco teus sonhos,
A luz não deixasse que víssemos rastros.

Sou mais sofrimento na tua ausência!
Se convivência alguma nos restasse,
Me seria cruel conviver comigo apenas.

Entendo teu apreço pelo inesperado,
Como se, em cada buraco no gelo,
Brotasse uma flor de primavera
Ou uma gota de água-de-cheiro.

Ou um pingüim distraído pulasse,
Quando o urso polar o espera.

Entendo tua espera pelo sentimento,
Como se, num derradeiro fumo de rolo,
O trago primeiro assim o fosse do vento.

Porque sou mais sorrateiro que um gambá
Que finge-se de morto e fede ao predador.
Muito mais gambá que lutador, muito mais!

Porque não tenho forças para rejeitar
Como a corredeira faz aos salmões.
Nem para fazer o que o salmões fazem
Na piracema, enfrentando o desaguar.

Entendo teu esmero ao respeitar o tempo,
Como se, no pouco espaço que temos,
Guardássemos um tempo diferente
Do tempo em que vivemos.

9.6.07

Pequeno Bilhete Londrino

Daqui de longe as coisas parecem tão calmas por aí, que é como se eu olhasse de um arranha-céu os minúsculos pontos nas calçadas, lá embaixo. E como nada se move a essa distância, resolvi escrever-te o que vejo de movimento aqui em cima.
Sempre, à essa época, as nuvens cobrem o céu por mais tempo, mais preguiçosas de passear. E de tanto que se instalam, conglomeram água, faísca e trovões. Demorou a ir-se a chuva e forcei-me a ver quão charmosas são. Não que prefira o sol ou o calor; mas o inverno, cada vez que me cubro de cobertores e vinhos, mais me apraz.
As voltas na orla têm se extingüido aos poucos, como os açaís e mates à beira-mar. Também minhas saídas a uma noite cada vez mais escura e desabrigada. Quase já me costumei com a presença próxima das putas e dos travestis de Copacabana, mas os pivetes mal-encarados ainda perturbam. É um bairro que tem sua delicadeza de moça; mas de moça violentada que procura vingança.
Não vi ainda balões no céu carioca. Espero que não os veja tão perto porque São João adora brincar com fogo. E esse mês de namorados e fogueiras ainda não me convenceu de sua fama por festas. A principal delas - teu aniversário - será vazia, com gente de menos.
As meninas daqui sentem sua falta. A quantidade de solteiras te procurando é invejável! Da Lapa à Gávea, todas já ouviram falar de você. Viu que teu filme aqui dirijo bem! Concorremos a Cannes ano que vem. De resto, continuo flertando com as angústias e os prazeres de um amor enrustido, quase secreto. E olha: há tanta felicidade no que sinto!
Desse mês aniversariante, nossas histórias se separam no espaço, mas se juntam na lembrança.