Da Poesia Viva

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Local: Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brazil

Quem passou pela vida em branca nuvem/ E em plácido repouso adormeceu;/ Quem não sentiu o frio da desgraça,/ Quem passou pela vida e não sofreu,/ Foi espectro de homem - não foi homem,/ Só passou pela vida - não viveu. (Francisco Otaviano)

30.5.07

Escudo

Lá fora, passa a manada que o vento controla num furacão.
A contracapa amarela das folhas, a pedra latejada que brilha,
Os coqueiros em fila abaulados, a rima indesejada, a lontra e o cão.
Noite profunda, mas fria. Um desejo de inverter a Terra e trazer à superfície, o núcleo;
Desejo de inverter meu corpo e trazer à pele, o músculo.
Cor de escuro que tem o infinito, que sempre o imaginei branco...
Bruto futuro que sempre o imaginei brando...
Doce passado que sempre o quisera duro.

Lá fora, urge a Natureza que não sei se é contente ou se não.
A contracara mendiga das ruas, a esfera da gota maldita,
Os enfeites da lua encarnada, a cor desbotada, a contradição.
Noite calada, mas viva. Um desejo de entrevar o momento e trazer à mesmice, um rumo;
Desejo de entrevar meus olhos e trazer ao lume, meu fundo.
Cor de mundo que tem meu cinismo que sempre o imaginei oco...
Leve dilúvio que sempre o imaginei louco...
Mole coração que sempre o quisera escudo.

Da Invenção

O poeta que escreve
Não depende da mão
Do papel rabiscado
E nem da palavra

Não interage com a dor
Não permanece
Nem desanda
Nem nada

Não corrompe a massa
Não viaja, não vagueia
Não se perde na multidão
Nem carece de falsidade
Muito menos é verdade

Nem presença
Nem solidão

O poeta não pensa
Não fala
Nem promove
Ou julga conselhos
Não é júri
Nem juiz da fala

Poeta não mora,
Nem é livre:
Poeta vive!

O poeta que brinca
É da maior seriedade
Poeta não junta
Nem espalha
Nem encoraja
Nem desagrega

Poeta não chove,
Nem molha:
Poeta chora!

Pois não abriga
Não move
Não se habita
Nem fica
Nem corre
Poeta não brota
Nem flora
Nem fauna
Ou mata
Ou ressucita
Nem mesmo acorda
Poeta não sonha

Um poeta machuca
Sugere, incrusta
Poeta é idôneo
Conveniente
Nunca enfadonho

O poeta mesmo
Não necessita
Não vibra
Nem assiste
Poeta não
Nem sim

Poeta não ama,
Nem odeia:
Poeta margeia!

Poeta nada
Afoga
Desespera
Espera
Poeta é calhorda

O poeta que completa
Não depende do outro
Nem de si mesmo
Nem do compromisso
Nem da discórdia
Ou glória
Ou esgoto

O poeta que suga
Não depende do sulco
Da rocha
Do precipício
Do abissal infinito

Poeta não nasce,
Nem morre:
Poeta sofre!

Simplesmente por ser poeta

E de tudo que é
Ainda sim não escolhe
Não foge a pé
Nem sobrevoa
Poeta não depende de avião
Nem de tropeços
Nem qualquer coisa

O poeta que pensa,
Não prende:
Poeta solta!

E do que liberta
Não aguenta
Nem desalenta
Suspende a quimera
Preocupa, zela
Se entrega
E inventa

29.5.07

Poema da Flor

As janelas assoviam o vento da tarde,
Como se a solidão de que vivo tão dentro,
Não me servisse de baluarte.

(Penetram-me os suaves muros que me prendo)
Sempre que os ergo de mágoa, parte por parte,
- Assim, para evitar tamanho sofrimento -

Vejo de que nada adianta reagir,
Se infurna-se no peito tanto sentimento
Regado amiúde que, em ti, quero florir.

27.5.07

Soneto de um poeta mudo

De todo amor que tenho, silencio!
Um poeta que ama inteiro, mas mudo.
Pois há no interno de mim, um muro:
Há mais amor no peito que consigo.

De todo amor que guardo comprimido,
Há menos dor no vício que na falta.
Há mais desesperança que infinito,
E toda solitude que me laça.

Pois há uma distância que não domino:
A saudade que te guardo e não digo,
Do poeta que te escreve e te apaga.

Há mais que tudo do que tenhas lido,
Mais que todo meu amor escondido:
Um poeta que te ama e que não fala.

22.5.07

Doce Vida

Uma lágrima ou duas,
bem ciliadas, escoradas,
que demoram a cair,
como a chuva empoçada
que a nuvem carrega.
Água morta, mas salgada
como a viva;
doce é apenas a vida.

Um tropeço na rua
ainda molhada da chuva
que demorava a cair.
Uma lágrima tarda
quando a mágoa a entope.
Mágoa morta, mas amarga
como a viva;
doce é apenas a vida.

Um sorriso nos olhos
ainda molhados da água
que se engolia pra dentro.
Um amor só se tarda
quando o choro o contém.
Florzinha escondida no céu,
como a vida;
doce que é a vida.

17.5.07

O sorriso dela

É refrescante!
Contrário ao calor da manhã
que invade a janela impedido
e que as cortinas permitem

Refresca como pasta de dente
Como bala de menta
Banho de mar
Bola de goma
de hortelã
Bolha de sabão
soprada por criança
Como noite na orla
Suco de abacaxi
Polpa de manga
Chuva de maio na grama
Cheiro de cola branca
Beijo ao pé da cama
A tua cama ao lado da minha
Como a altitude
ou a neve no topo da montanha
Como o orvalho na planta
A migração das andorinhas
Os dedos que espremem lama

Tão refrescante que levita
Como arde em minha garganta
Nosso beijo de mentira

9.5.07

Universo

Não posso um monte de coisas
Nem prometer tudo - ou nada - caberia
a mim prometer
Nem um campo cheio de orquídeas
ou flores-de-amendoeira
Nem num céu azul escrito em fumaça
Ou escrito em estrelas teu nome
Nem bosque secreto ou filme perfeito
Nem que me atreveria a lutar incansável
com um gigante esmagador
Nem cantoria ou serenata com violão
Nem posso adquirir terras ou mesmo cidades
Nem países ou continentes inexplorados
ou ilhas desertas
Nem universo inteiro, uma via-láctea,
buracos-negros, planetas novos ou velhos...
Posso oferecer pouco, mas posso:
Meu pequeno universo interno

Inverno

Chegou o inverno
O norte desceu
As andorinhas migraram
As janelas fecharam
Como os vestidos,
os decotes e as mãos

A escuridão
da noite assumiu
Virou-se a página com o vento
Os morcegos choraram
Como as bromélias
Que rolam das montanhas

7.5.07

Soneto do Amor Infantil

Perdi o controle do pulso
Das pernas que tremelicam
Dos sonhos em que te expulso
Da cama, do meu, do livro

Como também perdi tudo
Que, dentro de mim, guardava:
Um amor tão vivo e bruto
Que julgo não nos ser nada

Perdi a memória do corpo:
Dos poros que exploramos
Daquele beijo em meu olho

E o rumo sem esperança
Dum futuro ainda fosco,
Como o de duas crianças

3.5.07

Nós Dois

Não há porta que prenda o vento
Nem janela nem labirinto
Nem há cortiça alfinetada
Pelo zimbro do pensamento

Não há fruta que apodrecida
Germinasse em meu sonho vivo
Como se houvesse dentro dela
Um outro eu bem parecido

Não há fuligem nem brancura
Nem podridão de outra chuva
Que descesse a rua enrustida
Penetrando rude a avenida

Não há aquela cor que se via
Quando passavam maritacas
Quando choravam passarinhas
Ao ver o sol tardar no dia

Não há mais nada assim de fato
Como se os marrecos do lago
Fugissem do fundo de lodo
Como fugimos nós de todos

Nem furacão que nos sossegue
Nem há coração que nos bata
Como não há luz que nos cegue
Mesmo à beira da lua clara

Não há cimento que nos una
Como as paredes que levantas
Em torno da vida futura
Que sabemos os dois que espanta

Não há relógio que nos pare
Nem sinal que nos oriente
Nem Ocidente que me cabe
E dar-me a ti como presente

Não há constelação nem o oco
Do universo expandido preto
E fino como a casca do ovo
Que nos protege assim do medo

Não há fluidez que nos solte
Como dois suspiros da queda
De uma cachoeira que envolve
Nós dois noutro corpo de pedras

Ao Novo

A grama cortada
A flor caída
A fruta passada
A chuva
O beijo que a lua
dá no mar que o acorda
A saliva do sol
que o vulcão alaga

O ipê roxo
A orquídea
O sal da bebida
que vaza do corpo
A mata fechada,
introvertida
O gosto da amora no pé:
docinha feito a vida

A vida
A casa na árvore
O som do arvoredo no vento
A ventania
O trovão
O raio que não cai na piscina

A luz da noite cobrindo o mármore
O espelho da poça
O sapo
A formiga
O besouro
A mariposa tonta
sob os olhos da lagartixa

O mico saracoteando nos galhos
O antepasto do anu branco
preparando o papo pro carrapato
A preá na areia de construção

Os tijolos
As telhas
As baratas das telhas
O calango
A lacraia
O escorpião transparente
no saco de batata
A aranha em tocaia

A teia da aranha na manhã serenada;
branquinha, como renda natural
de uma colcha retalhada
As patas
As mãos

O tato que a natureza tem
quando coloca as estrelas
cuidadosamente em seu manto
e que, às vezes, escorrem dele
como a lágrima escorre dos olhos num pranto

Teu jeito de flor
que sacode-se inteira do caule
e joga-se em letra no lápis
até no poema se abrir,
como num impasse
entre a vida que segue
e a permissão de um amor que nos lace