Da Poesia Viva

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Local: Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brazil

Quem passou pela vida em branca nuvem/ E em plácido repouso adormeceu;/ Quem não sentiu o frio da desgraça,/ Quem passou pela vida e não sofreu,/ Foi espectro de homem - não foi homem,/ Só passou pela vida - não viveu. (Francisco Otaviano)

30.6.08

Canção da Saudade

Não é nada
É só ferida de batalha;
É uma fenda rasa na estrada,
a caminho da ilusão.

Não é nada
É só a voz da madrugada:
vento que corta feito uma navalha,
talha fundo o coração.

Não é nada
É só tristeza mascarada
na fantasia de um conto de fadas;
numa tela de Miró.

Não é nada
É só papel, caneta e mágoa;
É solitude, em mim desarrumada,
Onde a saudade ateia nó.

29.6.08

Guarda-Volume

Desisto!
É difícil regredir o tempo,
saciar os anseios,
relevar os conflitos.

É impossível desmascarar
o absurdo prodígio
da mente encabulada.
Nasce, vive e morre
uma dor enclausurada.

Desisto desse amor!
É forte demais prum diamante,
denso demais pro Universo,
tenso demais pra superfície
de um amante.

É amor demais pro cotidiano;
amor demais pro romantismo.
É bruto demais prum coração
frágil e um doce semblante
de menino.

Amor arredio demais prum segundo
e mesquinho demais pro infinito.

28.6.08

Palavra Final

A música fala entre almas,
como o conselho de amigo
ou como os sonhos de um filho
revelados ao pai.
Até como um beijo de dois amantes,
que da boca, nunca sai.
A música é o nascimento,
o testamento.
É o bem subjugando o mal.
A música é o interno viceral,
o âmago, a soberba.
O primeiro choro do rebento,
a vida inteira
e a palavra final.

26.6.08

O Caipira e a Flor

Tav'eu qui suzim,
du chêro a lembrá.
Cherim qui mi dá sôdádi...
I si venta longe,
u cherim vem cá
i regaça us óio.

Inté sei das cor
que a flor faz lumiá.
Das pétla branquinha dágua,
du miolo rosadim,
dus bichim di lá
qui machuca us óio.

Flô que é feito fia,
num qué se garrá.
Dispois di tempo suzinha
fica assim tristinha,
murcha, cabisbáxa,
qui dá dó nus óio.

Ma flô é sabida!
Bébi um cadim dágua,
cantarola musiquinha,
voa e rudupia...
Qui aí faz ventá
i léva meus óio.

Ah! Flozinha faz ventá
i léva meus óio


Adentrando

O vento vai parando com desgosto,
feito a paciência esgotada na risada.
Os olhos se encontram ressabiados,
num devaneio calmo e longo.

Bochechas coram as maçãs do rosto
e as pernas se resvalam enfreadas.
Um carinho tímido e outro recatado,
Como ir e vir, num desencontro.

Nos instantes que fixo teu pescoço,
teu pulso magrinho e tua nuca tatuada,
parece até que fujo do teu lado,
e adentro as portas do meu sonho.

25.6.08

Imprudência

A vida é assim mais divertida
quando imprudente!
Bem mais leve que eu pensava,
bem mais quente
em se tratando da brisa.

A frieza da vida
deve ser vinda de calafrios.
Daqueles inevitáveis sons do respiro,
quando as faces grudam,
meio negando,
meio fluindo...

Coisas assim não se afastam.
E não adiantam falácias,
regurgitos,
absurdos.
Não adiantam brigas,
quando és abraçada
no interno do escuro.

Não adiantam rimas,
pois o momento é curto,
instintivo,
paradoxalmente abrupto:
coisa latente do poeta
que vê um beijo à frente de tudo.

Nem música tua
ou cinema mudo.
Desordem, caos,
displicência...

Deixe que o beijo nos consuma
numa hora que se sonha:
a vida é mais divertida
quando a imprudência
toma conta!

21.6.08

Paixão Descuidada

Ando pensando na vida
No claro e no escuro
Sempre rindo do mundo

Ando às avessas com os fatos
Largando o passado
E agarrando à unha o futuro

Ando distraído
De até levitar
Com descuido

Não lembro
Não faço
Me prendo
Não mudo

Já nem desatino mais
Com saudades de tudo

Ando com os pés flutuantes
Beirando a loucura
Que nem curumim

Andando de lume aleijado
Dos olhos que arrancaste de mim

18.6.08

Tétis

Quem vive na superfície,
sofre co'a geografia.
Plana entre altos e baixos,
picos e planícies.
O mesmo ar das bocas
é o ar etéreo das feridas.

Então se dá o encontro de Urano
co'as mãos de Gaia.
A matéria-prima dos corpos,
enfim, nasce tão jovem.
Surge a mãe de três mil rios
e três mil ninfas.

À brancura do marfim nacarado,
desfila sua concha
carregada por cavalos-marinhos
que flutuam sobre a face do mar.
E os Tritões soprando as trombetas.
E Oceânida coroada de flores.

E num sistema solar,
ela é o nono satélite dos que rondam
Saturno.
Sempre às voltas,
com sua cabeleira esvoaçada
cobrindo os delfins
e os meus delírios absurdos.

16.6.08

Desengano

Há muito tempo estive sem dar conta de mim. Desacordado.
E, agora, despertei.
Sonhei com'um homem sonha acordado, finalmente,
apurando a mente,
ajuntando amigos,
segregando amores,
desejando vícios.

Sempre há horas em que não vejo tudo...
Eu, empreitado na vida,
no esboço, no arcabouço da lida.
Eu que não via-me ilícito,
hoje vejo-me tão desgostoso,
tão solícito,
tão mentiroso.

O amor que é descontente,
é calouço.
É palavra bruta
desejada, como se deseja um frouxo.

Não é para mim, o amor, meu cárcere.
É desengodo.

Assim mesmo, te amo!
Sem teu acordo,
nem mesmo algo sério de falar-te num estouro.

Meu amor é desengodo.

13.6.08

Presente

Tempo se dá, se recebe, e se guarda.

Ele é presente
pelo dia feliz.

Uma lembrancinha da vida
ou um souvenir.

É uma viagem
que se viaja quando se sente.
Mesmo até quando mata.

10.6.08

Filha de Iemanjá

Não sou feito d'água
nem de sal
nem coral
Não tenho areia
nem coqueiros
nem pombal

Não tenho as ondas
e as lagoas
que pariste
Não tenho fundo
nem raso
nem estirpe

Não faço parte
não mareio
não rio
Há gaivotas
em suas
baías
E, em mim, há frio

Não sou da realeza
sou lodoso
sou asco
Sou da terra

Não mereço,
Mas peço a mão de sua filha
Donzela

Quero subir no altar
Duma capela
Cor de azul-marinho

Com flores num buquê de alga
Com ventos de um sudeste vivo
Com peixes em algazarra
E febre nos golfinhos

Quero me casar com ela
Sob a maré da sizígia
Tendo a Lua, a passarela,
com seus escuros rígidos

Quero subir no altar
Duma capela
De amores vindos

Peço a mão de sua filha
sob testemunha das sereias
sob a mitra nos cabelos
de cada água-viva das beiras

Casaremos sob os gritos das baleias,
em meio aos arrecifes dos tubarões.

Casaremos em Recife, ouvindo frevo,
nossos olhos molhados,
em degelo,
vermelhos
e atravessados por arpões.

Dia dos Namorados

O dia ilumina a cama.
A cafeteira assovia no fogão
e os ovos estalam na panela.
Um cheirinho de açúcar no talher.
Geléia de morango na torrada
raspada.

O sol ainda pestaneja a bancada.

Um olho pisca entreaberto
o outro pisca ciliado.
A tábua corrida escorrega nos pés.
Gosto de hortelã nos dentes.

E algum odor estranho na rua
anuncia o frio do inverno:
maresia fresca como ventos.
Um carinho ingênuo de mulher.

9.6.08

Companhia

Olhei nos olhos da Solidão,
encarando-a por alguns segundos.
Fixo, lento...
Dividíamos o mesmo pensamento
e o mesmo esconjuro.
Faltava-me ainda uma demão de
sentimento (o qual delimitara)
para proteger-me de mim
no auge do involuto.

Propus-lhe um contrato:
cada virtude minha devassada,
é solitude em minha companhia
rondando pela sala.

6.6.08

Jardim de Esmeraldas

Cantas em tom degradê.
Alta e pianíssima como fada,
batendo asas em volta do ipê.

Não sei se és flor amarela
ou se aquela passarinha és tu.
Não sei se em mim me acuo
ou se há em mim uma janela.

Não sei mais se és folha de arbusto
ou se és estrela que, singela,
pinga aos goles de vinho bruto
misturada a uma cor de macela.

Não sei se és bruma da noite
nas teias da aranha magrela,
ou feito as gotas do orvalho,
deitadas sobre a primavera.

Talvez fosse mais que a floresta.
E eu, cada pássaro num galho d'árvore;
cada ninho sob os pés de um pássaro.
Como rebento que tua natura espera.

Além

Adoro esse olhar de quem
Já passou por quase tudo,
Mas que espera que há muito,
Muito ainda por vir.

Adoro esse jeito teu
De me olhar meio escudo,
Que não quer me alcançar o fundo,
E nem se deixa invadir.

Na verdade,
Eu te proponho trégua:
Assim, tu lavas meu olhos
Que deixo-te em paz.
Em meio à troca,
Espero, sem pensar no mundo,
Minuto a minuto,
Um momento - nem que seja fugaz.

Agora, enfim, posso ver
Que não sei disso tudo.
Mas que é preciso na vida
Desejar. Nem que seja, desejar, demais.

4.6.08

Galeria

Haja vinho num laço
Haja vodca
Haja pacto
Eu vadio no espaço
Tua voz dominante
E uma réplica do passado

Haja paciência
Para tanto encalço
Haja força
Haja impacto

Haja dança para os pés
Que haja de fato a dança
(que assim, não se engana)
Haja fôlego nos pés
Haja esperança

Haja música!

Haja cantoria tua
Bailarina, mar, protegida por
Iemanjá
Não importa que se repita
Mas que haja versos
Haja vida na tua boca
O tanto que há na minha

Que haja então mais vinho
Mais vodca
Mais absinto
Que haja definitivamente um pacto
De nós dois num mesmo espaço